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sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A Igreja do Diabo - Um conto de Machado de Assis - Capítulo VI


CAPÍTULO IV - FRANJAS E FRANJAS

A previsão do Diabo verificou-se.  Todas as virtudes cuja capa de veludo
acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às
urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o
tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não
havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse,
uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
   Um dia. porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis,
às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem
integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões
recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias
de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal
povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os
fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o
mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
   A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o
mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de
um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com
o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito
ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à
entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali
roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo
de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita
muitas outra  descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou
completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calavrês, varão de
cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na
campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava
a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só
não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a
amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela

solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas,
benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer
tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
   Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar
e concluir do espetáculo presente alguma cousa análoga ao passado. Voou de novo
ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular
fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não  o
repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e
disse:
   — Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas
de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão.
— Que queres tu? É a eterna contradição humana

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